Caminhe Pelo Lado Selvagem da Vida

por Júlia Albertoni

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Começo a escrever os primeiros esboços dessa crônica quando o metrô atravessa as terras pantanosas de Londres, o sol vai nascendo para preparar um céu molhado, ainda há resquícios da lua cheia que tomou café da manhã com a cidade, e a música “Take a Walk on The Wild Side” (Caminhe pelo Lado Selvagem da Vida) começa a tocar nos meus fones de ouvido. Coincidências não existem. Lou Reed quer nos lembrar, “I said hey honey, take a walk on the wild side” (Eu disse, hey querida, caminhe pelo lado selvagem da vida). Olho para a paisagem através das janelas, e pergunto, o que isso significa?

Já fizeram três anos desde que questionei o que seria viver o arquétipo da mulher selvagem e comecei essas crônicas – do jeito que a contadora de histórias Clarissa Pinkola Estés provocou no aclamado livro Mulheres que Correm com Lobos. Nesse tempo, foram muitas reflexões compartilhadas com vocês, insights, leituras, e até um livro, A Jornada da Louca, que publiquei no ano passado. Mas eu não sei se entendi bem o que é, afinal, caminhar pelo lado selvagem da vida.

Doo, doo-doo, doo-doo, doo-doo-doo – o coral canta na música. Apanho no meu caderno as anotações. Segundo elas, ser uma mulher-pessoa selvagem significa 1) resgatar a forma psíquica natural; 2) ouvir histórias que permitem escolhermos o caminho deixado pela natureza selvagem; 3) ouvir o chamado e tocar a porta; 4) ansiar por ser selvagem quando nos damos conta que dedicamos pouco tempo a fogueira mística ou a o desejo de sonhar; 5) saber instintivamente quando as coisas devem morrer e quando devem viver; 6) ser uma observadora, uma intuitiva, uma visionária, um oráculo, uma inventora, uma criadora, uma ouvinte que guia; 7) dar sustentação a vida interior e exterior; 9) viver uma vida natural, com integridade inata e limites saudáveis; 10) ter uma natureza conhecedora; 11) ser um ser inteiro

Olho então para os sapatos bicudos do senhor que lê o jornal na minha frente. Ser um ser inteiro… como a gente sabe quando está inteira? Como a gente sabe quando voltou para nossa forma psíquica natural, para uma natureza saudável, nutrindo nossa fogueira mística, ouvindo os chamados e dando sustentação para a vida? Como a gente sabe que vive na natureza selvagem?

O dia vai passando no ritmo grave e ao mesmo tempo suave da música de Lou Reed. “Take a Walk on the Wild Side” parece narrar um tipo de selvageria diferente. Escrita na Nova York dos anos 1970, onde a criminalidade, as prostitutas, artistas maltrapilhos e Andy Warhol compartilhavam de uma sensação semelhante: de que o underground, o submundo, o que é sujo, esquisito e diferente, é real, é o que é, e dali emerge arte, vida, muita vida, porque a arte e a vida estão em todo o lugar. Ouço a música repetidas vezes. Não acho coincidência começar a tocar no momento que voltei a escrever estas crônicas. E vou entendendo que pode ter mais haver com o arquétipo da natureza selvagem do que imaginava. É que Lou Reed nos convida a ir ao submundo – o underground – e sair dali cantando num coro colorido.

A verdade da música e a poesia de Clarissa Pinkola Estés me fazem dar conta que talvez ser uma mulher selvagem, ou uma pessoa selvagem, é ter a coragem para andar pelos lugares considerados não domesticados, sujos, esquisitos, que podem se encontrar fora de nós, mas que, em última instância, estão dentro. Lá dentro. Há uma parte de nós subterrânea, onde o selvagem cresce sem pudor. Uma pessoa muito sábia me disse uma vez: não é das águas lamacentas que emerge a flor de lótus e então um ser iluminado? Na natureza selvagem tudo é: não existe distinção do que é certo ou errado, limpo ou sujo, isso ou aquilo.

As mulheres selvagens correm com os lobos e não fogem dos lobos – elas não se escondem, não fingem ser. Elas andam pelo submundo e saem dali cantando num coro colorido. Elas tem fibra para fazer isso – como a música de Lou Reed tornou o submundo nova iorquino dos anos 70 em poesia. Isso é ser um ser por inteiro. É aceitar tudo o que se é e transformar tudo em poesia. Incluindo as partes maltrapilhas ou esquisitas. Ser um ser por inteiro demanda força, coragem e fibra. Você se conhece, se aceita, e se deixa caminhar pelo lado selvagem da vida.

Ande livre, e, no caminho, cante, bem alto, porque as crônicas de uma mulher selvagem estão de volta.

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