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Essa crônica começa com um problema que eu espero que você possa me ajudar a resolver – ou nos ajudar. É que esse problema surge quando eu escrevo para vocês. O processo é o seguinte: a ideia vem – talvez dos gênios da lâmpada mágica que se espalham pelo ar – e eu entendo que dela virão muitos parágrafos e insights profundos. Então como qualquer artista eu destrincho a ideia e desato a escrever. Em algumas horas, o texto está pronto. Mas eu não o publico imediatamente, dou um dia ou dois para ele maturar, fermentar, ficar bem gostoso. E você sabe o que acontece nessa maturação? Eu releio o que escrevi e me dou conta que falei, falei, falei e falei mais um pouco de mim e esqueci de você, leitora. Isso acontece muitas vezes. Taí o problema. E é um problema curioso porque conversando com os seres que moram no fundo da minha alma, eu entendi que meu objetivo com a escrita é justamente nutrir você. Te tocar com minhas palavras selvagens. Só que como é que eu vou fazer isso falando só de mim? Que obsessão é essa pelo “eu”? Porque que a gente tem essa mania de achar que tudo no mundo se trata sobre a gente, mesmo quando a gente busca o contrário?
Pois é, complicado esse problema que a gente se mete – conte no parágrafo anterior quantas vezes usei a palavra “eu”. Por isso, vou chamar para nos ajudar aqui o escritor do primeiro livro de 2021 que li, Kae Tempest. Em sua obra “On Connection”, escrito durante a pandemia, ele conversa com os leitores sobre o quanto hoje em dia a gente acaba passando o dia num estado de “numbness”, que significaria, dormência. A gente passa o dia olhando para o próprio umbigo, dormente de tudo o que está acontecendo ao nosso redor. É só pensar a última vez que você caminhou na rua, pegou o ônibus, o metrô ou esteve no espaço seguro do seu carro. Se você nessas ocasiões se fechou dentro da sua pequena muralha, ignorando as pessoas e os acontecimentos ao seu redor porque você estava fixo no seu objetivo – pegar os filhos na escola, encontrar alguém, voltar para casa, chegar em algum lugar, seja lá o que for – você já sentiu esse estado de dormência. Nele, a gente perde muito. A gente perde o mundo. A gente perde a interação com as pessoas que cruzaram nosso caminho, mas também com as manifestações naturais ao nosso redor. A gente perde a conexão.
Hoje mesmo eu estava no parque e um velhinho gorducho e barbudo estava fazendo uns exercícios excêntricos embaixo da chuva e do vento do inverno rigoroso que faz aqui – era uma mistura de Thai chi com uma dança de alguém que tomou cogumelo no Glastonburry em 1970. Ele me olhou e sorriu, não uma, mas pelo menos três vezes e eu o ignorei em todas elas. Eu simplesmente fechei a cara e voltei para meu exercício. Depois eu fiquei me perguntando, porque é que a gente se fecha para a conexão com outros seres humanos desse jeito? Eu vou dizer uma coisa para vocês: não era uma dormência consciente, era uma dormência aprendida que eu percebi carregar. Eu não pensei duas vezes em fechar a cara e não conectar com o velhinho. Eu não tinha nada haver com a vida dele. Eu não ganharia nada sorrindo de volta para ele. Talvez, eu tinha até medo dele. Eu tinha medo de um velhinho dançando no parque abaixo de chuva.
Dá para entender que o medo existe – nascida e crescida no Brasil eu bem sei que não dá para sair na rua sorrindo para desconhecidos colhendo alecrins dourados que nascem no campo – mas eu acho que tem algo a mais nesse medo que vai além do sentimento de sobrevivência e proteção. Uma camada em nós que nos bloqueia, que nos separa dos outros, enquanto nos dizem para cada vez mais mergulhamos na nossa individualidade, porque afinal tudo se trata sobre a gente. Você pode até argumentar: “Mas e a internet? E as redes sociais que nos permitem conectar com o mundo em poucos segundos? E a era de aquário que está vindo ou já veio para nos trazer um senso de comunidade? Você está se conectando comigo agora através de um blog, não está?”. Pois é. A gente consegue muita conexão por aqui, mas se você pegar uma lupa e analisar bem, na maioria das vezes, essa conexão não fala sobre conectar com o outro. Fala é sobre a gente ganhar aprovação do outro – quando o outro nos dá um like fica tudo bem. Em outras palavras: na maioria das vezes não buscamos conexão e sim aprovação.
Essa discussão me faz lembrar do fantástico caso dos cafés parisienses no século XXI. Se você vai ou já foi para Paris ou se como eu você gosta da cultura francesa, você pode encontrar o termo “Parisian way” ( à moda francesa) no café da manhã. Isso porque os parisienses tem essa cultura curiosa de passar horas sentados nas mesas das calçadas dos cafés da cidade apreciando suas baguetes meladas de manteiga, seus croissants recheados de geléia, seus jornais, quem sabe seus maços de cigarros, e essa cultura ficou um tanto quanto famosa ao redor do mundo. É chique, é legal, é sofisticado e principalmente charmoso, tomar um café à moda francesa. Mas talvez quando você realizar o sonho da sua vida e colocar os pés na cidade luz, ou caso você já tenha feito isso, ao ir ao encontro do dito café francês, você tem grandes chances de ao invés de apreciar as vagarosas horas da manhã sentada na mesinha da calçada, tirar dezenas (porque não centenas) de foto para postar nas redes sociais. Assim, você prova que não está buscando a conexão com a cultura local, com a comida, com as pessoas que estão com você e tampouco com seus seguidores. Você está mobilizado pelo seu próprio umbigo na busca por likes, pelo espetáculo que você esteve num café em Paris, na dormência que a vida moderna pode nos trazer.
Calma, nem tudo se perdeu. Ainda somos seres humanos e está na nossa alma buscar conexão de verdade. Em algum momento da nossa vida, no meio de toda essa dormência, do marketing da individualidade, a gente vai querer destruir as muralhas e conectar. Talvez um dia, você está, vamos dizer, voltando a pé da praia. O dia está lindo. Uma mulher a poucos metros à sua frente começa a cantarolar uma melodia e você, um pouco zonzo do sol que tomou o dia inteiro, bastante feliz pela agua salgada que lavou seu espírito, começa a cantarolar com a mulher. Quando você menos espera, sua mãe que leva as cadeiras de praia um pouco atrás também entra na brincadeira, e um casal de surfistas desconhecidos que estão um pouco ao lado começam também a cantar. Em poucos minutos, vocês estão todos cantando o mesmo ritmo. Vocês conectaram. A beleza? Nós todos podemos buscar por momentos como esse. Nós todos temos o poder da conexão dentro da gente.
Tem algo que o Kae fala no seu livro que me apontou um caminho para me reeducar à conexão: quando você sair na rua, tente perceber que não é só sua história que está acontecendo, cada pessoa que passa por você é protagonista da sua própria história. E eu gostaria de complementar esse pensamento: quando você usa as redes sociais, pense como você pode conectar com o outro mais do que receber aprovação do outro. Quando você está falando com alguém, olhe nos olhos desse alguém. Quando você está criando qualquer coisa, pense que a conexão só estará completa quando sua coisa for recebida por uma pessoa. Quando você for para Paris e sentar na charmosa calçada de um café, tire uma foto para espalhar sua alegria para o mundo, conectando com o que o momento é, sem o colocar numa moldura. E quando você escrever uma crônica selvagem, lembre da sua leitora, porque é ela que dará sentido para suas palavras, como você aí, agorinha mesmo. Assim, nosso problema se resolve.
Júlia P. Albertoni
*Image: Vogue, Dec 1939. Bibliothèque nationale de France, département Littérature et art, ark:/12148/bpt6k6542643z
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