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E se, ao acordar, ao invés de já saber o que vai acontecer com o seu dia, você não sabe, não faz questão de saber, ao contrário, permite seu dia se apresentar para você como uma música desconhecida, que te embala para o por do sol da meia noite, para as rosas no jantar, para qualquer alegria ou tristeza que a natureza pode te trazer. Afinal, saber de tudo é tão monótono. E se nessa não-espera você de repente olha pela janela e vê um arco-íris, você caminha perto do mar e encontra uma tartaruga, ou talvez você deixa a porta aberta e um beija-flor vem te visitar. Ali, nesse momento convexo, momento de encontros, entre você e a mais pura verdade do mundo, você pode encontrar significado, sentido, direção, inspiração para sua existência. Talvez é exatamente ali que você finalmente entende o que é magia, porque você está finalmente aberta para a comunicação do mundo com você. E ele diz: olha, querida, você não existe dentro de um laboratório controlado. Abre os olhos. Abre a mente. Tudo aqui pode ter significado.
Quem me dera lembrar disso naquele fim de uma tarde de quarta-feira de Setembro, que, segundo minha astróloga, seria o dia do meu aniversário esse ano, um dia antes da data original. Eu me protegia da chuva torrencial dentro do carro, esperando o horário para entrar no sítio arqueológico de Stonehenge cuja entrada fica no meio de um campo de pequenas colinas e rodovias. Sim, em menos de uma hora eu estaria caminhando pelo círculo de pedras mais famoso e misterioso da Pré-História… só que abaixo de toda aquela chuva eu com certeza não veria o sol caindo majestosamente entre as pedras como a gente está acostumado a ver nos filmes. Obviamente, eu estava decepcionada. Afinal, o dia havia amanhecido muito bonito e a aguaceira só começara na metade da tarde, como se estivesse justamente preparando o céu em tons de cinza para minha visita.
Só que a expectativa para conhecer Stonehenge era tão grande que bastou para deixar o aborrecimento para lá. Eu achava que eu iria entrar em um dos centros energéticos do mundo, porque é isso que a cultura New Age propaga. Uma das teorias é que Stonehenge era onde aconteciam observações astronômicas e cerimônias religiosas desconhecidas e eu esperava nada menos além de mágica quando entrasse no círculo de pedras imensas que o compõe. Antes de embarcarmos no ônibus dourado que nos levaria até o monumento, nem acreditei… seria a magia já acontecendo? A chuva estava parando. Do outro lado do horizonte, um pedaço do céu denso e cinzento começara a se abrir como se fosse uma cortina e o palco eram os vislumbres do sol e do azul ainda envoltos por nuvens. Sorri um sorriso místico para o céu.
No entanto, ao colocar meus dois pés dentro do círculo, eu não senti nada especial além de frio – havia um vento forte atravessando o imenso campo onde ficam as pedras – e curiosidade – afinal eu estava num sítio histórico de 3000 b.c. cheio de informações sobre nós, humanos. Eu também senti uma espécie de silêncio, o tipo de silêncio que chega sem explicação, rugindo o sopro de uma floresta a poucos minutos do anoitecer. Fiz perguntas para os guias, tirei algumas fotos, e em menos de uma hora, fui embora. O céu permaneceu cinza. Voltei da viagem tentando racionalizar a experiência. Porque eu realmente não senti nada de diferente além da minha curiosidade historiadora de estar lá? Eu não vi cores, não ouvi espíritos, não vi nada mágico, não chorei, não senti minha palma da mão formigar, nadinha. Eu esperava de Stonehenge uma sensação mais esotérica, poxa, ainda mais porque calhou da minha visita ser justamente no dia do meu aniversário astrológico. E eu insistia em comparar aquele momento com minha viagem ao Vale Sagrado do Peru, onde, acompanhada de uma xamã, tive profundos aprendizados e insights espirituais.
E, nessa linha de pensamento da razão maquinista, deixei o acontecimento para lá. Uma semana depois, eu caminhava em Hampstead Heath num domingo de manhã ensolarado e resolvi entrar numa livraria qualquer com o objetivo de abrir o livro que mais me chamaria atenção entre as prateleiras – essa é uma boa prática para aguçar a intuição. Depois de muito zanzar, minha intuição me levou a abrir a página de um livro que falava sobre um xamã de Botswana que convidara um grupo a observar tudo o que via numa caminhada por uma floresta imbuído de significado – desde as borboletas até o crack crack dos galhos das árvores. Não pude deixar de lembrar da minha amiga xamã do Peru. A vívida imagem da trilha de arbustos ao redor Templo da Lua pulou da minha memória. Foi lá que eu entendi com todos meus ossos porque os pássaros sobrevoavam as encostas das montanhas: apenas para me ver. Eu compreendi porque o sol brilhava na minha pele e porque eventualmente um mosquito planava no meu ouvido. Lá, eu entendi que tudo o que acontece na nossa vida, as manifestações naturais do ambiente, são imbuídos de significado, são uma pintura para admirarmos, aprendermos, relacionarmos – e não existem sozinhos – existem em relação. Há significado em tudo, basta perceber. E na livraria em Hampstead Heath, a página do livro me transportou.
Vocês sabem como é a vida, eu fechei o livro e segui meu dia. Na segunda-feira eu já havia esquecido do teletransporte. Depois de segunda vem terça, quarta, quinta, uma semana após a outra, pisquei e já era domingo. Até chegar o momento que eu me dei conta que estava me sentindo sem pulso, sem vida, mecânica nos dias, cabisbaixa. Eu queria escrever para vocês uma crônica, mas com esse humor não há nada para ser transmitido, que sabedoria poderia surgir desse estado? Foi então que um sussurro no meu ouvido enquanto eu lavava a louça (você sabe me dizer porque insights profundos insistem em vir quando lavamos a louça?) me lembrou de quando eu caminhava sozinha em direção ao mar mar numa das trilhas da ilha de Florianópolis. No meio daquele caminho não havia uma pedra, mas uma tartaruga, uma tartaruga de verdade, imensa, caminhando solitária entre as dunas, como eu naquele momento. O instante me uniu a tartaruga como se ela fosse uma velha conhecida que aparecera ali, para me dizer oi, para me dizer que estava tudo bem, para me dizer que nossos caminhos podiam se cruzar, que bençãos do acaso acontecem, que o mistério da terra é inesperado, belo e talvez vagaroso, escondido na sua casca esverdeada. Aquele momento foi precisamente o que fez do meu dia mágica. A tartaruga, o acaso, a coincidência, o segundo que nos uniu naquela manhã de sol, tudo mágico. E a informação que a tartaruga ressuscitou na minha memória, a experiência que tive em Machu Picchu, em Stonehenge e a página de um livro qualquer – inundaram minha compreensão, e meus dedos.
Corri para cá e prontamente comecei a escrever esse texto para vocês. Acontece é que eu me enganei ao achar que nada de diferente acontecera em Stonehenge. Minha mente racionalista que tentou encontrar o que eu achava que era mágica, iludiu-me, como faz muitas vezes com nossa compreensão. Minutos após entrar no círculo, enquanto metade do grupo que me acompanhava imediatamente desatou a tirar fotos e a outra metade a perguntar o que podia para os guias, eu fiquei um pouco afastada, observando as pedras, respirando profundo, tentando absorver a experiência com todos os meus sentidos. Duas pedras que formavam uma espécie de janela, de portal, chamaram-me atenção. Aproximei-me. Quando pisquei, nem acreditei: entre elas, distante no céu acinzentado, um arco íris se formava, tão real quando minha experiência dentro do circulo pré-histórico. Poucas pessoas além de mim também o vislumbraram. Minutos depois, o guia revelou que aquelas duas pedras que fizeram a moldura para o arco-íris eram as pedras que se alinham com o solstício de inverno – o portal onde o sol se alinha e que poderia ser considerado mágico. E ali ele brilhou um arco-íris por segundos, só para mim, na janela do Solstício, num dia do acaso, onde a água resolveu dar uma trégua, e a chuva que tanto me aborrecera, talvez estivesse lá justamente para proporcionar aquele momento. “Quanto acontece porque se não vê?” Fernando Pessoa me questiona mais uma vez. Ah, como a gente esquece… que a magia está nos detalhes.
Julia Albertoni
*Image: Vogue, Fev 1921. Bibliothèque nationale de France, département Littérature et art, ark:/12148/bpt6k6542643z
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