Quando escrevo essas crônicas, os aprendizados da vida selvagem, muitos dos mesmos ainda não tomaram forma, não podem ser categorizados, conceitualizados, organizados e expressos pelo mundo escrito. Por mais que eu me esforce, que eu diga que é a hora, é momento de os esclarecer, as vezes a sensação é que estou prendendo um pássaro numa gaiola ou talvez um tigre numa jaula. Mas desde que o lockdown começou meu apartamento se ampliou na imensidão secreta que escondia, de repente, houve espaço, houve tempo, houve um entendimento de que se o mundo desacelerou eu podia me acalmar também. Foi assim eu passei a olhar as coisas de cabeça para baixo. Foi assim que eu encontrei a celebração do meu corpo. Foi assim que eu fiz meu primeiro handstand.
Tudo começou mesmo com a minha cozinha: ela se transformou numa pequena academia. Minhas manhãs, que antes se arrastavam entre redes sociais, sono, café e sofá, passaram a ser mais ativas. Voltei a correr semanalmente, as vezes a simples volta ao redor da quadra como aquecimento para o exercício que viria enchia meu dia de alegria. Finalmente, uni-me a milhares de pessoas hipsters namaste ao redor do mundo e passei a praticar algumas posições básicas da yoga por pelo menos 10 minutos diários. Mas entenda o quão inédito é isso, porque eu nunca tive paciência para praticar yoga. Lembro com 15 anos de atender uma aula e sair de lá não exatamente desgostando da experiência mas com uma esquisita certeza que aquilo não tinha nada haver com a brilhante vida rock n roll que eu visualizava. Por volta dos meus 20 anos, quando eu entendi que exercício físico era necessário para me curar de problemas de saúde, escolhi corrida, boxe, muay thay, musculação, dança hip hop e qualquer coisa que liberava a fera de dentro de mim – esse foi meu caminho zen. Eu fiz algumas aulas de yoga, para dar uma chance, mas no fundo eu achava tudo aquilo muito chato…
Até que, pelo nada acaso dos algoritmos da internet, deparei-me com centenas de vídeos de pessoas fazendo uma posição de yoga chamada handstand, o que no Brasil conhecemos como “plantar bananeira”. Misteriosamente, a ideia de ficar de cabeça para baixo com a força dos próprios braços me fascinou. Eu queria fazer aquilo também. Na minha cabeça, eu iria me tornar uma super heroína se eu conseguisse, porque desde pequena eu não sabia nem “dar estrelinha”. No entanto, todos os vídeos ensinando a posição handstand partiam da prática das posições básicas da yoga – chato. Eu não tinha paciência para o básico. Eu não tinha tempo para o básico. Eu não gostava daquela balela toda da meditação e respiração. Eu queria já sair andando com as mãos. Só que o espaço que se abriu no meu dia durante o confinamento me permitiu encarar todas essas aversões em detrimento do objetivo que eu criei numa mistura de persistência e insistência: eu iria fazer um handstand. Assim, inclui yoga na minha bateria de exercícios diários. Será que eu realmente era capaz? Eu me perguntava receosa assistindo dezenas de vídeos de yoga girls ao redor do mundo me ensinarem truques e técnicas.
A ideia dessa crônica emergiu quando eu superei todas minhas expectativas após 6 semanas de confinamento e consegui, naturalmente, ficar de cabeça para baixo, num tipo de handstand que usa os cotovelos como apoio. Ao estabilizar meu abdômen e minhas pernas lá no alto, meu coração se encheu de alegria – sim amigos, esse foi meu ápice da semana e é quase inacreditável que eu esteja escrevendo sobre isso. Emocionada, sai correndo pela casa celebrando a conquista, fazendo danças esquisitas, descrédula da força silenciosa do meu corpo.
O meu primeiro handstand não vem aqui para falar para vocês que vocês devem parar tudo o que estão fazendo agora para praticar yoga. Na verdade, continuo achando ela um pouco chata e talvez o que eu genuinamente aconselharia se fosse o caso seria um bom treino de musculação ouvindo Jedi Mind Tricks. Mas o que eu encontrei de cabeça para baixo naquela manhã de sol foi a disciplina na sua forma mais pura. A insistência. A consistência. E é isso que gostaria de celebrar e lembrar vocês aqui e agora. Eu, uma pessoa ainda com medo de fazer estrelinhas, insistiu tanto, pouquinho em pouquinho, todo dia uma tentativa, até conseguir fazer um completo, perfeito e equilibrado handstand. O que é que a gente não consegue com a disciplina?
Para dar mais substância a minha reflexão, recorri a um antigo truque de escritores e procurei a palavra disciplina no dicionário, no entanto inevitavelmente minha mente relembrou as reflexões de um filósofo chamado Foucault. Disciplina tem um significado um pouco amedontrador. Tem haver com regime, normas, obediência, regulamentos que muitas vezes são impostos por uma força controladora. Talvez seja por isso que quando ouvimos essa palavra podemos sentir um certo desconforto… quero dizer, é tão bom ser rebelde, voar sem lenço nem documento, não ter horário para nada, não ter que fazer nada. Porém, é justamente aqui que eu inverto tudo de cabeça para baixo: e se disciplina for uma prática importante para justamente se alcançar um tipo de liberdade? Vejam bem, agora que eu consigo fazer um handstand, eu tenho mais liberdade com meu próprio corpo. Através da disciplina, eu desenvolvi qualidades antes inimagináveis. Ao invés de me limitar, a disciplina me expandiu. Não é curioso quando vemos dessa perspectiva?
J.P.A.

Crônicas de uma mulher selvagem nasceram da coincidência das folhas, dos sonhos e da potência das escritoras da alma. Se você quer acompanhar as palavras que seguem o instinto, os textos são publicados semanalmente por aqui. Lembre: a vida selvagem dá sustentação de dentro para fora.
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