Muitos me perguntam como estou durante o lockdown. Respondo que muito bem, vivo o privilégio de poder trabalhar de casa, morar com uma ótima companhia, viver num país politicamente estável – se é que posso afirmar que a política pode ser estável – e finalmente encontrar tempo para acomodar toda a energia que nos últimos dois anos me afivelou numa montanha-russa. Além disso, um dos meus lugares preferidos do mundo sempre foi meu quarto, meu espaço, o silêncio e eu, eu e minha imaginação. E dentro desse universo de aconchego, as vezes esqueço do que acontece lá fora, até que quando, de repente, entre uma poesia e outra, um sonho, um passeio de bicicleta, um pacote que chega nos correios, uma corrida na beira do Thames, uma conversa com os amigos distantes, e outra, eu as ouço. Elas ecoam pelas ruas parcialmente desertas, atravessam o vidro duplo do apartamento e parecem me perseguir sempre que saio de casa. As sirenes… elas ecoam dentro de mim. No momento que as escuto, um mar de sensações desaguam na lembrança do sofrimento, o sofrimento que sempre esteve ai, e que agora é escancarado por um som. Como diria Zizek, bem vinda ao deserto do real.
Ao mesmo tempo, as flores da primavera florescem por todos os cantos, dá para sentir o pollen no ar, rodopiando, com o vento. Vocês também as amam? Quando eu morava no Porto da Lagoa era numa floricultura que eu fazia os atendimentos de tarot mais sinceros que as bruxas da ilha testemunharam. Antes mesmo de ler as mensagens das cartas, meus consulentes já eram pacificados pela magia do espaço onde estavam, as plantas, o verde, os ramos secos, o aroma de eucalipto que inebriava, a beleza das flores de corte delicadamente selecionadas pelas mãos de gnomo da florista que gestava o lugar. As flores despertam qualquer coisa muito poética dentro de mim, qualquer coisa que no limite alegra meus olhos, enfeita minha mente, abraça meu espírito e dizem que ainda há esperança, amor, felicidade, bem-aventurança nesse canto do mundo, onde estou, observando-as. As flores, elas também são muito reais.
Eu não tinha o costume de comprar ou colher flores para mim, mesmo que no fundo eu contraditoriamente as queria como companhia na cabeceira da cama. As vezes eu as ganhava, de uma amiga, do namorado, da família, mas eu nunca me dei genuinamente de presente flores. Lá na Itália eu namorava as tulipas no supermercado, e, com certa dificuldade, comprei um ou dois ramos para enfeitar a simplicidade da casa onde morava. Quando cheguei em Londres era Setembro e fiquei encantada com a quantidade de plantas que são cultivadas entre os pubs e as esquinas – a cidade parece as vezes um grande jardim – enquanto inúmeras pequenas floriculturas e banquinhas se espalham entre os bairros. Era só eu passar perto de uma delas que as pétalas me chamavam, me convidavam para as levar para casa. Mas mesmo assim eu não ouvia. Eu dizia que eu não tinha dinheiro para gastar com essas bobagens, que isso não era prioridade, que haviam coisas mais sérias para eu me preocupar. Eu dizia que as flores não pertenciam ao meu mundo, que não faziam parte da minha realidade, apesar de elas falarem comigo, apesar de eu ter um ramo de flores aquareladas tatuadas no meu antebraço, apesar de eu as amar.
Eu ignorava a realidade das flores, assim como eu muitas vezes tenho ignorado a realidade das sirenes. Embora quando o barulho destas ultimas eclodem nos espaços vazios da cidade, eu, possuindo todas as capabilidades de escuta humana, não tenho como fingir que elas não estão ali, aqui, entre nós. Elas são como um raio que caem sob a Torre que por ventura eu construo numa tentativa secreta e inconsciente de me proteger das mazelas do mundo. As vezes eu construo uma Torre para me proteger do sofrimento. As vezes eu construo uma Torre para me proteger das flores. E vou contar para vocês um segredo, há momentos na vida que todos nos encarceramos numa torre, de marfim ou de concreto, quando não por uma eternidade de momentos. Buscamos mais e mais proteção, mais e mais segurar as coisas do jeito que são, mais e mais “está tudo bem”, mais e mais não quero mudança, não quero transformação. Lá no alto, aprisionadas por nossa própria rigidez, cercadas de flores ou não, distanciamos-nos da terra pensando que estamos subindo aos céus. Por isso, o efeito das sirenes é desconfortável, arrepiante, ensurdecedor, porque ao apreender o seu som, minha estimada Torre não tem outro caminho senão a destruição e, de repente, na calçada, na cozinha preparando um capuccino, na porta do supermercado, na ponte de Hammersmith, encontro-me entre as ruínas do real.
“It is what it is” a voz da minha chefe voa pelo telefone. É o que é. Ela me falou isso há muito tempo, e eu, por respeitar suas palavras de sabedoria, recorro a elas constantemente. Percebo que quando aceito que as coisas “são o que são”, um silêncio inquietante desabrocha, transformando o que eu pensava serem ruínas, em poder. O poder de ter responsabilidade pela realidade que nós todos compartilhamos. Tenho essa mania antiga ao dizer, “quando eu estive em X país/cidade/local, você não vai acreditar, lá eles vivem outra realidade”, porém sinto me lembrar pela milésima vez que a realidade é a mesma, o que muda é o contexto, a perspectiva, o ponto de vista, as Torres, as ruínas. E com esse centramento, essa clareza do real, assumo o poder de ter coragem, discutir, enfrentar, vivenciar o que é o que é. Sidarta Gautama só se tornou Buda porque ele saiu do castelo onde vivia, para entender o que acontecia no mundo de fato. Eu sinto que muita coisa, inclusive nós mesmos, armadilhas, tentamos nos colocar de volta ao castelo, a Torre – contradizendo um pouco os ensinamentos básicos sobre iluminação e generosidade.
Por isso, hoje eu queria refletir aqui, com você, que, na “realidade que é”, existem sirenes e existem flores. A verdade de ambas me lembra que tentativas de descolar da realidade não são saudáveis, mas também que eu não preciso abrir mão de uma para aceitar a outra. Finalmente, poucos dias antes do lockdown oficial caminhei com minhas duas mochilas até o supermercado para fazer compras, em meio ao caos que essa cidade estava, o medo que permeava todo lugar, desviando das pessoas, com receio de tocar em qualquer coisa. Eu estava me direcionando ao caixa quando a prateleira onde diversos buques de flores estavam mais uma vez conversou comigo. Dessa vez, apanhei um. A maioria das pessoas estava preocupada em comprar papel higiênico, álcool gel, feijões enlatados e macarrão, e lá estava eu, indo para casa carregando embaixo do braço um tanto desengonçada um maço de tulipas coloridas. Depois disso, as flores passaram a ser item essencial nas compras da semana, e eu as ofereço não só para meu deleite, imagino que elas iluminam os lugares tristes do mundo. Parece impossível falar de flores quando a realidade do sofrimento se revela entre as ruínas, mas aqui estou, dizendo que as verdades coexistem.
J.P.A.
*Imagem: Vogue, avril 1940. Bibliothèque nationale de France, département Littérature et art, ark:/12148/bpt6k6542643z

Crônicas de uma mulher selvagem nasceram da coincidência das folhas, dos sonhos e da potência das escritoras da alma. Se você quer acompanhar as palavras que seguem o instinto, os textos são publicados semanalmente por aqui. Lembre: a vida selvagem dá sustentação de dentro para fora.
Leave a Reply