Sigo a Kensington Road em direção ao Hyde Park e ouso sair do meu bairro pela primeira vez em 7 semanas. O que preenche os vazios urbanos é o perfume das flores de primavera no ar, camellias, daffodils, magnolias, bluebells, tulipas, wisterias… Passo o parque, o Wellington Arch, as árvores imensas do Green Park, chego no Buckingham Palace. Múltiplas tulipas coloridas enfeitam os canteiros ovais em frente ao símbolo do império britânico. Um homem assovia e cruza a calçada em frente aos imensos portões dourados. Eu o observo. Não fosse por um carro ou outro que contornam a rótula e os dois guardas reais que estão parados como estátuas um em cada lado do palácio, estamos sozinhos ali. Dou voltas bobas de bicicleta, como uma criança, olhando os detalhes dos monumentos geralmente tapados pela multidão que se amassaria por todo lugar. Quando teríamos o castelo da rainha só para nós? Pergunto para a lufada de ar fresco que vem do St. James Park. Isso tudo me faz sentir a pessoa mais sortuda do mundo e pensar na leitura de tarot que fiz para uma amiga que manifestaremos aqui como nuvens de sabedoria.
Somos mais, muito mais do que uma coisa só, lembro ela e lembro a eu mesma pela milésima vez observando todas as cartas do naipe de espadas que se debruçam sob a cama e conversam comigo. Minha amiga se sente ansiosa, porque acredita que agora que está em casa por causa do lockdown precisa ser produtiva, planejar, projetar seu projetos e até a astrologia tem a deixado aflita. Saber do futuro, do que pode vir, dos problemas que podem acontecer, somado ao contexto social esquisito, vão deixando ela confusa sobre o que ela verdadeiramente precisa fazer nesse momento. Ela se pergunta como usar de forma inteligente seu tempo livre, que projetos ela pode de fato projetar, como lidar com sua ansiedade que insiste em demandar dela resultados. E eu pergunto a você: por acaso você tem sentido um impulso para agir mas, ao mesmo tempo, uma imensa limitação porque está tudo instável e nebuloso ao seu redor? Independente da sua resposta, o tarot dá um conselho para as aflições de minha amiga e talvez esse conselho estenda suas raízes até você.
Eu sempre falo para meus consulentes que as espadas são o símbolo da comunicação, porque como as palavras que cortam o ar quando ditas, as espadas cortam o ar, precisas, assertivas, e voam, com as ideas, o intelecto, as borboletas. Elas dizem para minha amiga sobre o poder da lucidez e sobre a monstruosidade do excesso do intelecto. Explico. Quando eu era ativista uma liderança política me falou: se tivermos um objetivo final, estragaremos o processo. Entendi essa sabedoria como o problema da maioria dos movimentos políticos – eles se perdem num único objetivo, um fim que congela o caminho e que especialmente não deixa espaço para a verdade de cada indivíduo envolvido. Mas com o amadurecimento da minha alma, fui compreendendo que essa reflexão vaza da política, permeia o que chamamos de vida humana. Minha amiga estava ansiosa porque seu intelecto queria definir um resultado fixo para sua vida, cobrando-a de usar seu tempo de maneira produtiva porque afinal o mercado não pode parar. O monstro do excesso de pensamentos bloqueava sua lucidez, não deixando espaço para a intuição, o balanço, a dança do agora. Quantas vezes não arruinamos o nosso processo de desenvolvimento pessoal espontâneo em detrimento de uma ideia fixa de futuro?
Hoje mesmo, quando eu sai para minha corrida lembrei como ontem foi agradável correr no caminho do outro lado do Thames e achei que era para lá que eu tinha que ir. Eu estava literalmente apegada com a ideia (excesso de espadas) da corrida do outro lado do rio antes mesmo de sair de casa, mas quando eu cheguei perto da ponte uma sensação dizia que eu tinha que permanecer do lado do rio que eu já estava. Eu me senti inebriada, confusa, ansiosa. Era como se minha mente se tornasse um ringue: a opção do outro lado do rio era minha mente apegada a uma ideia de corrida através de um resultado planejado horas antes, de acordo com minhas experiências passadas, que não deixava espaço para a necessidade de permanecer ali, e a escolha de correr do lado da beira do rio que eu já estava era minha mente livre, comunicando-se com minha alma, preparada para uma nova aventura, para um caminho desconhecido. Enquanto eu tentava decidir (eu devia continuar com meu plano para uma corrida perfeita ou não?) dei pequenas voltas em círculos com todos os músculos do rosto contorcidos, como um ouroboros comendo meu próprio rabo, até a necessidade do momento – ficar ali mesmo – finalmente vencer.
Mas a história não para por ai. Após alguns quilômetros de um caminho deslumbrante, totalmente novo para mim, eu entrei num beco charmoso, passei por uma padaria apaixonante que vendia produtos frescos embaixo de uma pérgola na calçada, e avistei o furgão de um amigo estacionado em frente a uma casa aleatória. O amigo que eu sonhei na semana passada, que eu tenho pensado em mandar uma mensagem, perguntando se esta tudo bem. Procurei ele pela rua, mas não o encontrei. Continuei minha corrida sorrindo, era por isso que eu precisava ficar daquele lado do rio! Minha alma queria ser lembrada que outra alma precisava de um olá, como vai! Quando voltei pelo mesmo caminho, dei de cara com meu amigo no portão.
Teimamos em focar nossa atenção num objetivo final, não nos permitindo que atendamos as necessidades do agora. Necessidades. A primeira vez que eu realmente entendi o que eram necessidades eu estava ouvindo o barulho dos sinos pendurados do lado de fora da sacada de onde dava para ver a cadeia nevada da montanha dos Alpes, no coração do bairro Campidoglio, em Turim. Uma outra amiga insistia nessa palavra enquanto tomávamos expressos napolitanos até nosso corpo todo suar de alegria porque ela trabalha com o que se chama comunicação não-violenta. Existem várias necessidades dentro de nós nesse exato momento que não escutamos porque estamos distraídos com as mensagens do monstro do excesso de intelecto. Elas podem ser emocionais ou físicas, não importa, ela são o que são: necessidades.
Você pode escutar? O que sua alma precisa? Perguntei para minha amiga ao ler suas cartas do tarot. Porque se você viver apegada a ideia de tenho que gerar um resultado, não se permitirá viver agora. A permissão é um antídoto. O excesso de intelecto pode ser usado com mais sabedoria, a vontade de agir dentro da limitação também, continuei aconselhando. Você pode planejar sim, mas seria muito mais saudável se planejar uma vida, projetos e ideias que atendam suas necessidades ao invés de pensar que a vida se resume a uma profissão ou a uma meta de mercado. Mudamos a todo momento. “Quem ontem fui, hoje em mim não vive” – escreveu Fernando Pessoa – “Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro, nos lábios — na língua principalmente —, na superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu não sei dizer” – brinca com as palavras Clarice Lispector. Na minha opinião, não importa muito definir quem somos. Transformamos, renascemos, nosso corpo passa por fases, até um dia não existir mais. Mas as necessidades são muito reais e elas estão tentando se comunicar com nós nesse exato momento.
Da janela eu vejo a vida literalmente passar como se eu estivesse sentada nas poltronas de um cinema. Quando eu trabalhava num hostel na Lagoa da Conceição lembro de um americano debochar ao dizer que eu parecia uma velha, de braços cruzados, com os cabelos amarrados num coque alto, observando a vida através da imensa vidraça da recepção. Hoje eu acordo dentro desse espaço que se expande e que limita, contemplo a impermanência através da janela, seja pelos plátanos que renascem como contei na crônica da semana passada, seja pela lua, que estava cheia, agora já está nova, seja pelos itens do armário que logo se esvaziam, seja pelo sol que a cada dia estende mais o tempo dos seus raios e eu o vejo no horizonte iluminado do meu sofá. Eu sou novamente a velha, observando o movimento do mundo acontecer lá fora, enquanto aqui dentro, parada, a impressão é que coisa nenhuma se move, enquanto tudo se move. É que nada está imune a mudança, nem o palácio da rainha está.
J.P.A.
*Imagem: Vogue, 01 janvier 1922. Bibliothèque nationale de France, département Littérature et art, FOL-V-5554 (BIS), http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb343833568

Crônicas de uma mulher selvagem nasceram da coincidência das folhas, dos sonhos e da potência das escritoras da alma. Se você quer acompanhar as palavras que seguem o instinto, os textos são publicados semanalmente por aqui. Lembre: a vida selvagem dá sustentação de dentro para fora.
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