Houveram dias que eu deixei com que as noticias tomassem conta das minhas horas. Os gráficos, os vídeos, as lives, os bate-papos desesperados. Eu deixei também com que os infinitos posts, stories e conteúdos invadissem minha casa, como um tsunami de informações de todos os lugares do mundo. E assim, permitindo que o oceano de distrações conduzisse meus pensamentos, que o ódio, a indignação, a irritação permeasse minhas ações, percebi que perdia uma oportunidade, a oportunidade rara do silêncio. O chamado para mergulhar na ausência de sons me disse que eu sou grande, apesar de parecer pequena, fez meus dedos cantarem, apesar de poucos quererem ouvir, e confirmou que está tudo bem não precisar se posicionar, falar, discursar. Está tudo bem só observar.
Agora, eu e o silêncio, olhamos para essas narrativas globais, encaramos todas essas pessoas que falam, falam, falam, falam, falam, e cansam, e são muitas, e são muitos conteúdos, são muitos textos, são muitas imagens – nos alimentamos disso – são muitas histórias, muito conteúdo trespassado, muitas falas, discursos, opiniões. E eu acho isso de alguma forma violento. Principalmente porque cultiva a ideia que mesmo agora em casa precisamos nos manter ocupados, temos que estar sempre conectados, numa ânsia por fazer, fazer, fazer, que não me parece nem um pouco sábia. E eu não falo isso para aqueles que vivem distúrbios psicológicos – para esses a abordagem provavelmente é outra e deve ser guiada por um profissional – mas para aqueles que continuam forçando a mente a se distrair com superficialidades, que insistem em fazer, fazer, fazer dando continuidade a hábitos que podem ser revisitados. Agora é o momento para isso. A nossa caverna tem tanto para nos presentear!
O que mais me marcou no livro 1984 de George Orwell não foi a distopia, o desconforto de uma sociedade controladora, o poder do Big Brother, a agonia quando Winston bebe Gim Victory, mas sim a linguagem “duckspeak”. A linguagem de grasnar como um pato. Duckspeak significa falar, falar, falar e não dizer nada, como se o som fosse uma grande massa confusa e desnecessária para a verdade que nos habita. Eu vejo a metáfora agir hoje além do estado, entre todos nós, sociedade do espetáculo. E quando todos falam, ao mesmo tempo, poucos ouvem, poucos comunicam olhando no olho, poucos assimilam o que realmente esta acontecendo, e essa violência entra dentro de mim, dentro do meu corpo e da minha casa. Da Coreia eu vou para a receita de brownie, para a família da minha amiga e para uma aula de astrologia, enquanto as discussões nos comentários acontecem, todos falam, falam, falam, falam, todos querem falar, e toda essa fala me cansa, porque eu entendi que eu só necessito de silêncio.
No silêncio eu mergulho. Passo horas só com ele, a mãe de onde todos os outros sons podem ser criados. Não preciso ser produtiva. Posso deixar o ócio aparecer. Não preciso fazer nada. Só vivo o que é real. De repente, dentro do meu flat de dois cômodos, expande-se um espaço, dentro do meu corpo abatido se alarga um universo, dentro dos meus pensamentos passa a existir um vão. É irônico mas mesmo não saindo do lugar eu passo a ter a sensação de que a minha vida engrandece, expande, aumenta. Sorrio para minhas janelas e confirmo “Está finalmente sobrando espaço!”. O mundo teve que parar para eu entrar na caverna e esvaziar a mente ocupada por tantos sons de pato, que se confundia e acreditava no imenso telefone sem fio coletivo.
Foi nessa busca silenciosa que a vi, a diligência. Diligência era uma antiga carruagem pública usada para transporte de passageiros com itinerário e horários fixos. A palavra hoje significa ter uma rotina (horários fixos) que proporciona um tipo de movimento que nos leva a algum lugar, mesmo que esse lugar não seja um território. Eu passei a perguntar que hábitos eu sempre quis no meu dia mas que eu nunca tive tempo para por em prática. Eu não tinha espaço. Incorporar novos hábitos reais passou a ser a energia que me conduz. O carro que eu conduzo. Mas para entender isso eu tive que proteger minha caverna mergulhando no silêncio, no ócio e na liberdade de não ser nem um pouco produtiva.
Eu sinceramente não me importo onde isso se situa politicamente. Foi a maneira que eu encontrei de manter minha saúde mental – e eu profundamente acredito que uma mente pacificada pode contribuir muito para o bem estar de tudo, de todos, e talvez isso seja extremamente político. Que presente que temos para rever nossas prioridades, entendermos o nosso papel no mundo, acalmarmos nossa efervescência. Que momento para esvaziar e abrir espaço para o novo, novas estruturas, novos pensamentos, novos hábitos que podem colaborar com o outro. No silêncio não há nada exatamente a procurar, mas eu sou muito curiosa e encontro um ditado que ouvi quando era muito jovem: somente xícara vazia pode ser enchida.

J.P.A.
As Crônicas De Uma Mulher Selvagem nasceram da coincidência das folhas, dos sonhos e da potência das escritoras da alma. Se você quer acompanhar as palavras que seguem o instinto, os textos são publicados semanalmente por aqui. Lembre: a vida selvagem dá sustentação de dentro para fora.
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