Quem inverteu o céu?

Toda vez que eu passo na frente do Albert Hall meu coração se agita. Toda vez que eu cruzo o Hyde Park no fim do dia minha alma sente qualquer coisa que ama, qualquer coisa que dança, qualquer coisa que dissolve minhas referências. Há uma corrente cósmica que paira em Londres. A lua entre as casas, a chuva entre as pessoas, os cafés que vendem chá, os cachorros desengonçados, os sotaques do mundo inteiro. Morar em Londres é como morar num grande navio de culturas. Aqui você se conecta com gente de todo lugar, de todo tipo, de todas as línguas, cores e histórias. Morar em Londres me faz sentir que há momentos que o mundo se inverte.

Duas ou três semanas atrás eu estive num workshop de poesia no Welcome Trust. Esse lugar foi um dos primeiros que comecei a frequentar quando me mudei porque é um dos mais relevantes institutos de história da saúde e da medicina – o que se conecta com meu background acadêmico. Mas naquele dia eu não estava indo lá para passear, explorar a biblioteca ou ter inspirações para uma pesquisa, e por isso, eu estava com medo. Eu já fiz cursos de escrita criativa no Brasil e sabia que sempre há o momento que envolve escrever e compartilhar o que se escreveu com o grande grupo. Lá estava eu numa mesa cumprida, observando os quadros da coleção do Sr. Welcome, vendo o topo dos prédios da Euston Square, eu, entre britânicos, o que é algo incomum porque quando eu digo que estou num navio de culturas quero dizer que mais de 70% da população daqui é imigrante. Logo no primeiro exercício, levantei a mão não acreditando na minha coragem. Minha boca estava seca a horas, mas ignorava as necessidades físicas para me concentrar no desafio de expor minha escrita em outro idioma. 

Eu enrolei a língua em algum momento da leitura. Repeti a palavra “absorved” duas vezes, gaguejando. Para minha surpresa, um menino amável e muito britânico sentado a minha frente disse que gostou da forma que eu li, segundo ele a palavra enrolada deu um toque para o ritmo da poesia, deu poesia para a poesia. Respirei aliviada e me concentrei em entender a leitura dos meus colegas de oficina, porque eles usavam palavras rebuscadas, elaboradas, refinadas – esmeradas ! – assim como eu faço quando escrevo em português. Alguns deles escreveram coisas que pareciam boas demais, mas nem sempre eu os entendia. Não pude deixar de as comparar com minhas rimas simples… mesmo que no fim das contas o que eu escrevi não era péssimo. Na verdade,  se meu vocabulário é simples, eu consigo criar textos descomplicados, acessíveis – constatei. Quem disse que a simplicidade não é uma coisa boa?

Uma questão de perspectiva e o medo desaparece nas nuvens acizentadas. Há algo sobre cruzar as fronteiras do que se acha que é bom ou não é. Descubro que o céu é o limite. De repente, o escrever em outra língua não é o bicho de sete cabeças porque assim eu consigo expressar sentimentos sem precisar dar uma volta refinada no mundo. De repente, meu sotaque, meu sangue latino, é mais que especial, dá cor para o céu daqui, que é o mesmo céu de lá. Por mais que eu tenha estudado anos história internacional, que eu tenha trabalhado com a cultura brasileira de norte a sul do país, existia uma camada em mim que insistia em dizer que a cultura do outro – europeu – é melhor, e, consequentemente, o que o que eu tenho para dizer não é tão bom, o que eu escrevo na língua ‘deles’ não tem valor, o que paira por aqui está hierarquicamente superior a mim. Mas de repente, numa experiência como a que acabo de contar, essa camada desaparece. O que era antes, já não existe mais. O que era ruim inverte de sentido, esse medo de não ser bom o suficiente em relação ao outro se dissolve e você deixa de se comparar. Você é o outro e o outro é você. 

Vejo esse limite do absurdo várias vezes por semana. Inversa. Convexa. Você já imaginou ser mais rápida que uma McLaren? É o que acontece quando você anda de bicicleta em Londres. Você passa as McLarens, corta os Porsches, deixa para trás os Jaguars e volta e meia anda lado a lado de umas Ferraris. Eles formam filas para chegar no mesmo lugar que eu chego em menos de 5 minutos. Eu não sei dizer quem tem mais poder nesse caso… você sabe? Poder aquisitivo, poder de liberdade, poder de felicidade, poder de sustentabilidade, poder de circulação sanguínea. O que é poder? A experiência única de coisas que se invertem. Você se inverte. Desaparece no espaço, como se entrasse num estado psicodélico que faz outras percepções e outros sentidos emergirem da existência material. O que era materialidade não se dissolve, mas se transforma de acordo com as novas verdades. A matéria está ali, mas já é outra coisa, mutou, transformou, perdeu-se nos labirintos da impermanência. Quando tudo isso acontece, o sentido não vai embora, mas a inversão faz nascer novos sentidos e de estático o mundo se transforma num imenso organismo vivo, que ainda não há linguagem, intelectualidade ou fórmula que consiga explicar, o movimento por entre as fissuras da terra, o movimento entre as fissuras do tempo, o movimento que me inverte de lugar. Numa oficina qualquer ou no meio dos carros, contemplo: o céu é o limite e está embaixo dos meus pés. 

J.P.A.

As Crônicas De Uma Mulher Selvagem nasceram da coincidência das folhas, dos sonhos e da potência das escritoras da alma. Se você quer acompanhar as palavras que seguem o instinto, os textos são publicados semanalmente por aqui. Lembre: a vida selvagem dá sustentação de dentro para fora.

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