O Comer Intuitivo

Essa crônica pode não seguir uma lógica linear porque na temporada pisciniana talvez eu tenha perdido um pouco o foco e a inspiração me faz querer escrever um mar de observações. Mas toda história tem uma começo e eu estava pensando sobre essa coisa de mulher selvagem. Constatei que eu teria que clarear mais o que era a natureza selvagem, o que eu, a sociedade, outras autoras e pensadores, entendiam por isso. E nesse fim de semana, entre uma palavra e outra, entre um entendimento e outro, entre um filme e outro, entre uma gota de chuva e outra, um assovio do vento na janela e outro, eu consegui simplificar a essência da natureza selvagem com uma imagem. 

Digamos que a natureza selvagem é uma fruta saborosa que está envolta por várias camadas ao redor. Temos que descascar camada por camada para poder descobrir como é essa fruta, qual é seu cheiro, qual é seu sabor, qual é seu gosto. As vezes você não sabe que tem fome daquela fruta: como ter fome de algo que nunca se provou? As vezes você acha que chegou nela, mas é apenas outra camada imitando o seu centro e o gosto pode ser falso. As vezes você tem uma lembrança do gosto, mas não tem mais força para descascar.  

A vida dá voltas estranhas, o tempo se alonga e se encurta, e de repente na minha memória eu me vejo adolescente, olhando para o espelho do meu quarto, me diminuindo pelo meu tamanho G, pensando que ninguém nunca, jamais, nem eu, vou me querer. O corpo que distancia o que é intuitivo, o corpo que separa, o corpo histórico que eu não quero mais, que eu quero da revista, que eu quero do cinema, que eu quero da vitrine, que eu de repente nem sei mais o que quero. O corpo, pensei estudando sobre a natureza selvagem, é uma das armadilhas, é uma das camadas que me distanciam da verdade da fruta. 

Por causa dele, eu lembro também de copiar dieta da revista Capricho que eu pegava emprestada das amigas. Mais tarde, eu descobri intolerâncias alimentares e entrei no mundo da nutrição – se você me perguntar quais polifenóis tem numa maçã capaz de seu saber decor. Ayurveda, funcional, anti-inflamatória, metabólica, para perder peso, para ganhar massa, para diminuir celulite, há dieta para tudo e eu era a maior incentivadora da dieta. Eu fiz um mestrado em história da alimentação, tive barriga tanquinho, perdi vários kilos, corri 10k por dia, ganhei massa magra, fiz muai thai, transformei e destransformei. Quem me encontrava na rua me elogiava, porque eu estava tão saudável, não é mesmo? 

Calma. Os assuntos dessa crônica são variados mas são ondas que se complementam. É porque há uma pergunta que ajuda a descascar as camadas da natureza selvagem e ela está relacionada com a palavra <nutrição> em toda sua abrangência. Ela é simples, porém poderosa: “Você tem fome de que?”. A alma tem fome. Precisamos entender o que ela deseja. Mas cuidado. Nas palavras de Pinkola-Estés, “existe ao nosso redor um universo que acena constantemente, que se insinua nas nossas vidas, despertando e criando o apetite onde antes havia pouco ou nenhum”. Ou seja, as vezes achamos que temos fome de algo porque parece sedutor, correto, interessante, mas não é exatamente aquilo que nossa alma precisa. São as camadas falsas que escondem nossa natureza. Talvez se eu pergunto: “Eu tenho fome de que?” um mar de conceitos e estereótipos atravessam meu ser, porque se eu tenho um corpo assim, eu tenho que me nutrir de acordo com o que dizem que meu corpo precisa, da pressão que vem de fora, dos conceitos que me inundam, seja do mercado do fast food ou da indústria do orgânico.

Permitir que uma pressão externa oriente nosso apetite nos faz correr o sério risco de nos alimentarmos com não-verdades. O que todas as dietas que segui tinham em comum é fazer eu pensar que “se eu comer isso aqui agora depois eu não posso comer aquilo, eu não posso comer isso também, agora não é hora para comer esse outro, talvez se eu não comer agora e mais tarde comer vai ficar tudo bem”… uma matemática estranha que  me perseguia 24 horas por dia. Conforme os anos se passavam, entendi que a vida selvagem precisava ser expulsa, ser aberta, ela precisava deixar de estar em segundo plano, e a coisa toda da vida saudável veio junto, porque existe uma linha tênue entre o que se acha que é saudável e o que é ser livre, o que é realmente natural, o que faz parte do corpo, da vida, o que nutre por completo, o que é realmente sustentável para a mente e para o corpo a longo prazo. Por isso, quanto mais eu descascava minha fruta selvagem, mais eu me libertava das restrições que minha mente-dieta impunha e comia aquilo que eu quisesse, quando eu quisesse. E foi ai que eu descobri um conceito libertador formulado nos anos 1990 chamado <comer intuitivo> que eu acho que faz brilhar o mar de observações dessa crônica.

Comer intuitivamente tem haver com seguir o instinto para saber do que se tem fome, e para isso é preciso treinar a intuição, porque é bem fácil de ela ser enganada pela publicidade ou pelos hábitos equivocados que são construídos numa sociedade de massas. Não tem como isolar a intuição do resto, porque como humanos vivemos em diálogo, em troca, em comunidade, porém é possível se libertar das expectativas sobre o que é saudável, o que é corpo, o que se deve comer e talvez usar toda essa energia para algo mais verdadeiro e sustentável, como descascar a fruta selvagem. 

Chega-se assim a conclusão de que o corpo não é armadilha como eu primeiro constatei, o corpo é canal. Comunica-se entre o que é matéria do espírito e o que é matéria animal. Ao não aceitar o que eu simplesmente sou, enfraqueço o que corre dentro, distancio o que posso me conectar, a natureza que esqueceram. O corpo não pode ser uma armadilha, o corpo é a matéria que faz o fruto ser possível e muito provavelmente a ideia que temos sobre o corpo é que é a armadilha. E o corpo se coloca como obstáculo entre nós e a natureza selvagem. E a ideia de que temos que nutrir um corpo que não está aqui e está numa imagem nos faz sufocar o que o corpo realmente precisa para se nutrir. Comer não é um ato científico. É um ato emocional, cultural, social e acima de tudo selvático. 

J.P.A.

As Crônicas De Uma Mulher Selvagem nasceram da coincidência das folhas, dos sonhos e da potência das escritoras da alma. Se você quer acompanhar as palavras que seguem o instinto, os textos são publicados semanalmente por aqui. Lembre: a vida selvagem dá sustentação de dentro para fora.

2 responses to “O Comer Intuitivo”

  1. Gabriela Grimm avatar
    Gabriela Grimm

    Adorei, Ju!
    Que delícia te ler!

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    1. Um pouco haver com o seu mestrado, eu acho? Que bom que você se deliciou ! :*

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