Eu tinha certeza que esse texto seria sobre o mundo dos sonhos porque ontem o sol entrou em Peixes, signo que está relacionado as águas do insconsciente e eu estava me preparando para assistir o filme Waking Life a fim de ter alguns insights quando as águas que me habitam sentiram uma necessidade emergente de transbordar. Não tive dúvidas a medida que meus dedos desabafavam palavras, argumentos, frases, pensamentos como a correnteza de um rio aflito que no momento há algo mais importante, urgente e apaixonado que eu preciso lhes contar. Afinal, através das palavras se organizam as ideias, limpa-se o rio e os argumentos são delicadamente tecidos para a psique se acalmar.
Tudo começou com a repetição de um padrão que a tempos convive dentro da minha personalidade quase sempre adormecido, mas que toda vez que acorda é como um fantasma faminto a me perseguir ou – como explicarei mais adiante – com um veneno que polui meu rio criativo. O padrão nada mais é que a ideia absurda de que eu preciso caber dentro de uma caixinha – como se eu fosse um produto de supermercado, como se minha vida pudesse ter apenas um rótulo, como se eu pudesse realmente ser uma coisa só.
Por isso eu estive tensa e confusa nesse sábado. Como expliquei para minha mãe no telefone, não conseguia encontrar a personalidade que une minhas personas. O gatilho dessa ansiedade foi a necessidade de eu organizar minha vida profissional, especialmente meus projetos criativos. Perguntas como: qual é o nicho desse blog? Me amedrontam e fizeram tempestade em copo d’água. Eu precisava escolher para ontem uma diretriz totalizadora se eu quisesse ter sucesso no mundo adulto. Minha mãe respondeu com sua calma perfeita para essa temporada, porque ela é praticamente a manifestação pura do signo de Peixes. “Você sempre foi múltipla minha filha”.
Eu não vejo mais problema em transformar o que produzo em mercadoria, o problema é não saber como minha personalidade – múltipla – cabe no mundo do mercado. Das diversas entrevistas de emprego que fiz eu nunca sabia muito bem como resumir em poucas palavras minhas milhões de capacidades que nadavam como cardumes dentro de mim – eu sou a pintora, a atriz, a poeta, a escritora, a administradora, a historiadora, a produtora, a roteirista, a taróloga, a blogueira, a aprendiz, a recepcionista, a trilingüe, a pesquisadora, a criadora, a comunicadora – lá vou eu encontrar um rotulo que satisfaça meu entrevistador e que me mutila, me seleciona, me recorta.
Lembro de ter assistido a um video da Elisabeth Gilbert no qual ela explica porque não aconselha mais que as pessoas sigam um propósito de vida. Ela conta que desde nova ela sabia que queria ser escritora e seguiu esse objetivo com perseverança, ano após ano, fracassos após fracassos, até publicar um dos livros mais famosos da década passada. É o que a nossa cultura orienta: “Siga seu sonho! Siga sua paixão! Encontre seu propósito e tudo vai ficar bem! Veja o homem e a mulher de sucesso, eles sabiam o que queriam – e queriam uma coisa só”. Elisabeth diz que não precisamos desses pensamentos, porque as vezes não sabemos qual é a nossa paixão, ou estamos no processo de encontrar uma paixão, ou temos várias paixões e não há nada de errado com nenhum desses movimentos. Ao tensionar todos os músculos do nosso corpo para descobrir um propósito de vida, sabotamos a fluidez do nosso rio criativo e o poluímos.
A metáfora do rio poluído vem do conto de La Llorna que Clarice Pinkola Estés debate. La Llorna é uma mulher abandonada por seu marido que em desespero afoga seus dois filhos no rio próximo da sua casa e depois se mata. Quando chega no céu lhe dão a orientação que ela precisa voltar para encontrar suas crianças e por isso hoje ela vagueia pelos rios poluídos procurando com seus dedos de fantasma seus filhos perdidos. O conto é uma metáfora: nós mulheres temos um rio criativo que muitas vezes é poluído por venenos que dizem que nossas ideias – nossos filhos – “são inúteis, que ninguém vai se interessar por elas, que é vão o esforço de continuar”. Ou, no caso, que nossos projetos precisam encontrar uma caixinha para se adequar, e que só vamos dar certo na vida se encontrarmos um propósito único. Dessa forma, poluímos nosso rio criativo até morrermos e nos tornarmos versões assombradas de nós mesmas, infinitamente procurando as ideias que nós mesmas afogamos.
Talvez seja muito melhor seguirmos nossa curiosidade, deixar que a vida manifeste suas possibilidades, permitir que o rio criativo flua para que as paixões que temos ou que ainda vamos ter o enfeitem como flores que caem das árvores exuberantes ao seu entorno. Se quanto mais a gente pensa em algo mais aquilo vai tomando conta das nossas vidas, quanto mais eu insisto em encontrar um único rótulo que me defina e que defina meus projetos, mais eu poluo meu rio com complexos negativos, menos eu confio na sua correnteza, menos sobra tempo para eu o limpar e para eu seguir minha curiosidade.
Nessa temporada de Peixes que a gente possa confiar nas nossas águas, permitir que elas nos levem para onde tiverem que nos levar, mas que arregacemos as mangas para as despoluir dos venenos que depositamos diariamente com cobranças, exigências, pressões, todo o complexo que nos relembra um tempo que não tínhamos direito de opinião, de manifestação, de criação, de vida selvagem. Que pelas águas consigamos ter uma sensação de completude, porque a vida é muito mais que a soma de suas partes. Não somos uma e simples, somos muitas e complexas. Somos múltiplas.

J.P.A
As Crônicas De Uma Mulher Selvagem nasceram da coincidência das folhas, dos sonhos e da potência das escritoras da alma. Se você quer acompanhar as palavras que seguem o instinto, os textos são publicados semanalmente por aqui. Lembre: a vida selvagem dá sustentação de dentro para fora.
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