Enquanto eu me embrenhava na escuridão da pequena floresta que ia desembocar na grande colina de onde poderíamos ver a cidade, pude avistar as sombras de algumas pessoas subindo morro acima, abaixo de um denso céu avermelhado. Parecia um sonho. Embora estivesse congelante no parque Hampstead Heath. A umidade da terra fria atravessou o plástico que colocamos para sentar e esperar o primeiro dia de uma nova década. Levamos a ceia, chá e chocolate para nos aquecer, mas estávamos no alto de Londres pantanosa, no meio de uma área florestal, durante o inverno e por isso é muito difícil distrair o frio.

Um amigo britânico me contou que durante Segunda Guerra Mundial um avião caiu lá e o piloto, perdido, mandou mensagens de resgate afirmando que estava em qualquer lugar que ele desconhecia do interior, porque quando você está no meio de Hampstead Heath você não diz que está num dos centros do mundo moderno. Naquele momento nós estávamos bem conscientes de onde estávamos. Podíamos ver Londres brilhando a nossa frente como as jóias de um gigante acordado que foram moldadas ao redor do Rio Tamisa. Escolhemos passar a virada do ano no que dizem ser um dos pontos mais altos da cidade, não só porque dali poderíamos ver todos fogos, mas porque nos parecia poético passar a virada de uma década no mesmo bairro onde Aldous Huxley, T.S. Elliot, George Orwell, Ian Fleming, John Keats, Sigmund Freud um dia moraram e no parque onde até Karl Marx levava sua família passear.
Aparentemente, centenas de pessoas tiveram a mesma ideia, não sei se movidas pela poesia, mas certamente movidas pela possibilidade de ver os fogos do alto. Quando o coro da multidão contou, 5, 4, 3, 2, 1, “Happy New Year” e o grande esperado momento chegou, ali permanecemos vendo as luzes estourarem em todas as direções: acima, do lado, atrás dos prédios, lá longe, aqui perto. Era muita gente, muitos fogos e a urgência da visão.
Só que quando eu fazia o caminho de volta, cuidando para não resvalar nas imensas poças de lama e tentando não ser dragada pela multidão que também queria ir embora, um outro espetáculo me beliscou em silêncio. Avistei ao meu lado direito um grande campo escuro onde não haviam nem luzes, nem fogos, nem gente. Não havia nada ali a não ser um mato escuro e penetrante. O céu não estava mais denso e sim iluminado por algumas estrelas e foi nele que vi: três lanternas chinesas como as Três Marias que fazem Órion subindo rumo ao firmamento. Eu consegui me desvencilhar das pessoas que seguiam o caminho de volta para contemplar aquele momento. O frio, o vento, as lanternas cortando o céu, o estridente mato em silêncio, o primeiro dia de uma nova década, tudo me contava um segredo. Um segredo que eu já havia escutado.
Quando eu estava no alto de outra colina, no Vale da Lua de Cusco, no Peru, acompanhada pela minha amiga Kandry, sentei numa pedra que parecia um trono, voltada para a vista da cidade que se desdobrava em centenas de tons de terracota, rodovias e carros em movimento. Ali fechei os olhos e fui guiada por uma meditação ativa. Quando os abri, os pensamentos e a visão da cidade me deixaram agitada, ansiosa, frustrada. Depois, sentei na parte detrás da pedra-trono, voltada então para uma imensa colina verdejante enfeitada por alguns pássaros e feixes de sol. Ali, ao abrir os olhos, senti meu coração se alegrar, meu pensamento clarear, uma verdade emergir. Minha amiga revelou : “vida simples”, foram suas únicas palavras.
As lanternas não precisaram me dizer nada. Elas tampouco tentaram me seduzir com um espetáculo planejado, caro, elaborado. Eram só a luz da vela e papel se deixando voar como uma oferenda para o céu. As três lanternas me fizeram lembrar mais uma vez do valioso ensinamento. Respirei e conclui rindo das minhas botinas encharcadas de lama: eu trocaria todos os fogos de artifício do mundo por um momento como aquele. Profundo.
Feliz nova década.
J.P.A.
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