Olá! A Louca é a personagem do tarô que inspira uma série de contos profundos escritos pela autora do blog. Boa leitura!
Beija-Flor por um dia
A Louca repousa parte de suas têmporas no vidro sujo do ônibus que solavanca pela avenida movimentada. O sol aquece ainda tímido o concreto molhado da chuva torrencial dos últimos dias e algumas poças na calçada refletem a agitação da manhã de segunda-feira. Ela respira um sonolento tédio enquanto observa o alvoroço urbano que parece ter tomado quatro expressos duplos de barriga vazia e quase não acredita quando vê, no meio da pista, entre os automóveis que passam velozes, um girassol exuberante despontar de uma rachadura feia do asfalto. O ônibus passa praticamente por cima da flor e ela perde a planta de vista, sentindo-se completamente esquisita pela sua deslumbrante miragem.
Ninguém parece ter percebido o girassol. As pessoas continuam nas suas pequenas distrações, algumas penduradas nas estruturas do ônibus, algumas sentadas dormindo, algumas imersas em Candy Crush, algumas revisando anotações, algumas conversando animadas, algumas parecendo estátuas rígidas. E todas elas dão um pequeno movimento para frente e para trás quando o ônibus bruscamente freia para um grupo de pedestres passar, o que faz a Louca desgrudar seu corpo do assento e perceber que desce na próxima parada.
Alinhando a alça da bolsa e ajeitando o jeans que insiste em cair da cintura ela vê o ônibus se distanciar veloz na avenida e em instantes parar num semáforo. Mas sua visão é preenchida por uma borboleta azul do tamanho da palma da mão que voa despretensiosamente, pousando num poste de luz a poucos passos de onde está. Fazia tempo que ela não via uma borboleta, pensa a Louca, parando para contemplar o inseto como se o mesmo fosse um ser de outro planeta de asas cor de céu. Em menos de um segundo de contemplação, centenas de outras borboletas de vários tamanhos emergem detrás de uma árvore num vôo sincrônico até forrar o poste, que agora parece um longínquo buquê de asas azuis.
O mais curioso é que os os transeuntes continuam caminhando como se nada estivesse acontecendo. “Que coisa mais linda!”, exclama a Louca mentalmente, segurando firme na alça da bolsa atravessada, aproximando-se do poste com desejo de tocar em uma das belas borboletas. Quando seu nariz está quase encostando no poste, elas levantam voo todas ao mesmo tempo, preenchendo o vazio do espaço como um enxame encantado e desaparecendo por entre os edifícios. “Algúem viu isso?”, a Louca pergunta baixinho com os olhos brilhando pela poesia do momento. Mas ninguém parece ter visto.

Ela segue sua caminhada se sentindo novamente esquisita, como quando viu o girassol que nasceu do asfalto. Perdida nos pensamentos, pisa numa poça de água acumulada num buraco da calçada que reflete as poucas nuvens do céu. Ao pisar, a água começa a vazar para os lados de uma forma contínua, criando um rastro de líquido infinito, até chegar num muro encardido e grafitado. Ali, a coisa mais exótica acontece: a água passa a subir o muro para cima, invertendo de ponta cabeça os limites da gravidade, para então despencar para baixo e se transformar numa pequena fonte de água corrente. A Louca está de boca aberta pelo que acaba testemunhar e olha para os lados para ver se alguém também está, mas ninguém parece ter notado nada.
Chocada, ela se aproxima da fonte. Antes que possa chegar mais perto, o próprio muro começa a ser envolvido por dezenas de trepadeiras verdejantes que nascem das fissuras da calçada de cimento enquanto a água se torna mais e mais abundante, jorrando como uma cachoeira cristalina. A poça que a Louca pisou já não está rasa e nem estreita, mas profunda e cheia, alargando-se até a vala da calçada e a enchendo como se fosse um afluente. Ela observa tudo aquilo com o coração palpitando uma emoção estranha, dando um pulo para trás quando, onde estão estacionados três carros, gigantes árvores brotam, quebrando o asfalto e levando os automóveis às alturas.
Agora, a Louca começa a entrar num pânico que a faz sair correndo, enquanto outras árvores rompem o chão e fecham o céu com suas copas cintilantes cujos galhos são tomados por macacos e pássaros coloridos. “O que está acontecendo?”, ela grita ofegante, vendo ainda as janelas dos edifícios quebrarem em milhares pétalas de flores e ramos envolverem lentamente as construções. Ela pára subitamente numa sinaleira, sem entender porque as pessoas continuam agindo como se nada estivesse acontecendo, enquanto o próprio asfalto é tomado por uma relva silvestre e as calçadas por arbustos de tulipas.
Mas ela não consegue raciocinar muito bem, pois começa a ver cores que nunca viu antes, como se o espaço ao seu redor fosse multidimensional, ao mesmo tempo que sente um formigamento correr por dentro do seu corpo, que se torna subitamente leve. “O que está a…”, questiona a Louca um pouco zonza, percebendo que não consegue completar a pergunta pois um gracioso bico pontudo nasce de sua boca e nariz. Suas pernas encolhem, sua pele é tomada por penas multicoloridas, seus braços se transformam em asas. Sem mais nem menos, ela paira no ar.
A Louca agora é um exuberante beija-flor, voando entre as árvores recém nascidas e os prédios floridos. Depois de explorar e brincar pelos ares, ela se aproxima de uma velha que está abaixada colhendo um maço de lavandas nascidas do cimento. “Você pode ver o que está acontecendo?”, a Louca entoa no seu ouvido. A velha faz um gesto simpático, revelando o brilho cintilante dos seus olhos claros e responde, “Sim, pequeno pássaro. Por toda a beleza ao nosso redor, estamos no caminho da polinização. Mas só vê isso aqueles que, como eu e você, desabrocham igual às flores, saindo da superfície”.
J.P.A.
Este conto faz parte da edição número #002 da News Cósmica. Para a assinar, clique aqui.
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