A Jornada da Louca e a Jornada da Heroína (ou do Herói)

A heroína pode ser qualquer um. A heroína somos todos independente de onde estivermos. A vida é uma grande aventura desde o momento que nascemos enquanto passamos muito vivos por diversos estágios de iniciações, aprendizados, mortes, renascimentos, obscuridades, vitórias, conquistas, derrotas e a por fim a clareza numinosa de que o ciclo continua.

Assim, a aventura é a própria recompensa da vida, só que ela é perigosa – existem as possibilidades negativas e positivas no processo, ambas além do nosso controle. A Louca está aprendendo isso. Ela é a heroína da história que compõe as cartas chamados arcanos maiores do tarô e, por isso, ela se aproxima de todos nós ao se  jogar do abismo na carta número 0 e passar por uma série de situações até chegar na carta de número 21.

Na maioria das vezes, a Louca é representada como Ele pelos baralhos (The Fool), talvez pela matriz grega de contarmos, no Ocidente, histórias pensando apenas no herói masculino que avança destemido ao campo de batalha. Mas nada impede que pensemos na jornada aventureira da vida a partir da heroína e do ponto de vista feminino. Na cultura asteca, por exemplo, segundo Joseph Campbell, a existência de vários céus permitia que as mortes de mães em trabalho de parto se destinassem ao mesmo céu dos grandes guerreiros mortos em campo de batalhas. A mulher é sim heroína, travando batalhas profundas, mesmo não tendo sido associada, ao longo de certas versões da história, literalmente ao arquétipo de guerreira de batalhas.

A heroína passa por diversos estágios na vida. A narrativa que ela passa é cheia de aventuras e ossos psíquicos. A Louca, nossa protagonista, constantemente trava batalhas físicas e espirituais com um destino que nem mesmo sabe, porque partiu por sentir que lhe faltava algo, muito próximo do que ela chama de “seu propósito no mundo”. Na verdade, ela está em busca do seu desenvolvimento espiritual profundo, enfrentando um mundo que está muito vivo e em movimento. Poderíamos talvez arriscar e dizer que ela busca sua bem-aventurança.

A ilustração de 1535 que lembra o livro “Jonah and the Whale” onde o herói é engolido por uma baleia, a qual representa o poder que navega nas águas do inconsciente. Ele sai de dentro da sua barriga transformado, porque aprendeu a vencer as partes sombrias da sua psique.

Nos pensamentos alquímicos, de onde emergem as cartas do tarô, cada um dos elementos do mundo tem o poder de se transformar em outro para chegar na grande e suprema bem-aventurança final. Dessa forma, chumbo pode vir a ser ouro, assim como os homens e mulheres podem se transmutar em sábios. Essa é a ideia de desenvolvimento pessoal.  Assim, em cada carta, a Louca se transforma em direção à sua evolução e se aproxima da gente, das nossas experiências, das nossas passagens psíquicas. A ideia de que toda a etapa supera a anterior tem matrizes europeias alquímicas e renascentistas, num tempo que se criavam “trunfos alegóricos” populares, como desfiles e poesias em verso, onde cada trunfo solucionava o anterior. Por exemplo: o trunfo da Morte era superada pelo trunfo da Fama e esta era superada pelo trunfo do Tempo.

I Triunfi da Morte por Giacomo Borlone de Buschis, 1485.

A questão é que depois de ter entrado nas águas da consciência, do inconsciente, das transformações, das trevas, das virtudes – como lealdade, temperança e coragem – das iniciações, dos ritos de passagem, das descobertas, dos encontros, das adversidades, depois de ter matado seu dragão interno, de reencontrar sua criança interior, de se lembrar da dança cósmica universal da vida, a Louca chega ao final da sua aventura voltando ao início. Exatamente onde começou. Porque a estrutura da aventura da heroína, é cíclica, assim como um dia, um ano, um mês, uma vida. E por isso, o grande segredo da jornada é o processo e não o destino final, o que está muito claro nas filosofias orientais sobre samsara, por exemplo.  

“The Wheel of Becoming”, a representação budista do Samsara, de forma que a vida se assemelha a uma roda que gira sem parar. O ideal é que estejamos no seu eixo central, porque não temos controle a não ser o equilíbrio mental. Essa simbologia, mais associada a elementos alquímicos, pode ser encontrada na carta de número 10 do tarô, A Roda da Fortuna.

Do tarô, passamos para as histórias dos mitos, do cinema, das novelas, dos seriados, dos contos, dos romances, dos quadrinhos. A jornada dos heróis e heroínas nestas narrativas também passam por esse arco onde cada estágio supera o outro. Por isso, assistimos, lemos, ouvimos as aventuras com o coração na boca – é que elas se aproximam tanto da nossa experiência de vida. Afinal, não somos também heróis e heroínas?

Na nossa sociedade, quando “deixamos” de ser crianças para nos tornarmos adultos, passamos por uma passagem psicologicamente heróica. Temos que deixar de ser uma coisa, abdicar de uma condição, para assumirmos a coragem da auto-responsabilidade e a confiança da maturidade. Isso exige um processo de morte e ressurreição simbólicas. Do mesmo modo, quando saímos da barriga da nossa mãe, atravessamos outro ato heróico, deixamos de ser criaturas aquáticas para entrarmos num outro estágio de vida. Ainda, a mãe que nos deu a luz também é uma heroína – ela doa seu corpo para outro ser nascer.

Talvez seja por essa relação profunda entre as narrativas e a vida que somos magnetizados pelas histórias, procurando sempre uma forma de nos aproximarmos do cinema, da televisão, das leituras. É ali que entendemos vários processos de desenvolvimento pessoal que estão ocultos pelo nosso inconsciente coletivo. E é assim que o tarô se aproxima de nós mesmos, sendo muito além de uma ferramenta mágica de revelação do futuro, mas um dispositivo que permite mergulharmos nos ossos psíquicos muitas vezes confusos, enterrados, mergulhados no vasto oceano da existência.

Nas palavras de Joseph Campbell:

“Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontramos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E Lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo”.

Portanto, ferramentas como o tarô, os mitos, as histórias, podem ser vistos de outra perspectiva, para nos ajudar nas passagens e transições inevitáveis da nossa jornada de vida. Talvez, assim, a bem-aventurança se manifeste espontânea na nossa mente compreensiva e virtuosamente heroica.

equilibrista 03 Para conhecer mais sobre meus contos sobre A Jornada da Louca e se aproximar das histórias heroicas da vida segundo as cartas do tarô, acesse aqui.

Beijos,

Júlia

~ consultas bibliográficas

Joseph Campbell, O Herói de Mil Faces

Joseph Campbell, O Poder do Mito

Alquimia e Tarô, Robert M. Place

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