A auto-sabotagem vem na forma de uma neblina que não permite que enxerguemos direito. E, quando menos esperamos, estamos paralisadas, congeladas, mutiladas. Ela se apresenta em muitas situações, na maioria das vezes oculta, calada, sorrateira, como uma amiga falsa, pronta para tirar o foco do que sabemos que tem que ser feito. E lá estava você, quase indo escrever aquele livro mas alguém te convidou para ir para o bar, quase começando a se alimentar melhor quando achou melhor deixar para segunda-feira, quase entrando para a aula dos seus sonhos quando pensou em economizar mais, quase se libertando da necessidade de ter um relacionamento constante quando ela ou ele apareceu, quase pintando um novo quadro quando resolveu começar a limpar a casa, quase se preparando para organizar melhor as tarefas quando o sofá chamou para uma maratona de séries intermináveis.
É como se a sabotagem fizesse parte desse complexo negativo, demoníaco, opressor, da nossa psique, que funciona como uma polícia pronta para nos denunciar ao fracasso. Não é só porque o sofá é mais gostoso ou porque o bar é mais divertido, escolhemos não pintar aquele quadro ou escrever aquele livro porque há uma acusação interna que nos sussurra o falso conselho: não importa o que você está fazendo, você está fadada ao fracasso, você não está raciocinando com lógica, você não está certa, você não é boa suficiente, você não é magra suficiente, você não é bonito o suficiente, você não é esperta suficiente, você não vai conseguir. Por isso, tudo o que nos aparece pela frente acaba se tornando mais atrativo, mais interessante, mais importante, do que o que sabemos que tem que ser feito.
Então o que fazer com essa névoa branca, densa e fria? Primeiro, é preciso reconhecer os padrões que estão a gerando, segundo, negociar entre você e seu complexo negativo, para libertar as amarras opressoras da própria psique enevoada. Em ambos os estágios, uma coisa é clara: arregace as mangas para limpar os pensamentos, rever os valores, as insignificâncias, os estados de sentimentos, porque há trabalho para ser feito, a faxina é no plano mental e a grande medicina aqui é o poder da consciência.
5 insights para compreender o auto-boicote
Listei insights que vieram das minhas experiências, de leituras, do tarô e de todas as ferramentas de autoconhecimento que me ajudam a encontrar e explicar estes dois estágios:
- Estou com fome de quê?
A pergunta que devemos nos fazer a cada instante. Encontrei-a no livro “Mulheres que Correm com Lobos”, mas sinceramente acho que vale para todos os gêneros. Muitas vezes, estamos caminhando afobados, apressadas, de cabeça baixa, e, ao encontrarmos uma torta de limão paramos tudo e nos empanturramos. Mas talvez não era exatamente o que queríamos. Nosso desejo era de uma torta de morangos com caramelo salgado. Seguimos nosso caminho e de repente, uma tigela de quindim faz pararmos tudo e, novamente, comemos até não podermos mais. Assim, continuamos nosso caminho, alimentando-nos constantemente daquilo que não desejávamos. A pergunta: “Eu tenho fome de que?” precisa ser respondida a todo segundo. Ela é urgente porque faz consultarmos nossa intuição. Não precisa ser usada apenas em decisões grandiosas, pode ser: “tenho fome de ir ao cinema?”, “tenho fome de conversar com uma amiga?”, “tenho fome de ir ao bar?”, “tenho fome de beijar alguém?”. Descobrir do que se tem fome a cada instante já é um grande passo na liberação da auto-sabotagem. Do contrário, vamos comendo qualquer coisa que nos exibem no grande buffet da vida.
- Entre o ócio, a diversão e o boicote
Uma vez que se tenha claro do que se tem fome, porque se está vivendo a cada segundo, nem que seja viver para descansar, podemos distinguir claramente entre o ócio, a diversão e o boicote. Os dois primeiros são importantes para a manutenção da vida criativa. Há um tempo para fazer e um tempo para nada fazer, respeitemos estes momentos. O problema é quando o tempo para nada fazer começa a ultrapassar o tempo do trabalho ativo, deste que vai ao encontro aos seus desejos mais profundos ou às suas responsabilidades na materialidade – como pagar contas, frequentar as aulas, acabar aquele trabalho enrolado. É preciso entender, portanto, o padrão do boicote, se por acaso ele vem no formato de “só uma série a mais” ou “amanhã eu termino!”, você pode estar confundindo os limites dos tempos.
- O complexo acusador
O boicote, no entanto, pode estar se dissimulando de diversão e ócio, mas a sua matriz é demoníaca e se alimenta do complexo predador, acusador, destrutivo. Nesse momento aquela voz dentro da gente diz que estamos fadados ao fracasso. Ah, o fracasso… essa entidade que ronda todos os seres, como um buraco negro que interrompe a cachoeira vívida e criativa. O boicote muito provavelmente está vindo daí, desta força que nos põem para baixo de várias formas e nos paralisa, comunicando que talvez não somos boas e bons o suficiente, quando, na verdade,ele está sempre atrás das ideias mais suculentas, mais lindas, mais iluminadas e maravilhosas. Portanto, encontre, identifique e esclareça seu complexo acusador.
- Cultura da denúncia
O complexo acusador não surgiu de repente na nossa psique, mas foi cultivado anos a fio por uma cultura que também é restritiva, especialmente para as mulheres. Os rótulos, os estereótipos, os eternos patinhos feios, a ideia de que o corpo é um mármore que pode ser esculpido e comparado. Tudo isso faz com que sacrifiquemos as vidas criativas e os potenciais dos nossos irmãos e irmãs, aumentando não só o complexo acusador neles, mas o nosso, no maior estilo o feitiço vira contra o feiticeiro. Por isso, depois de identificar o padrão do seu boicote, preste atenção nas ideias, palavras, imagens e conversas que você sustenta coletivamente, porque elas são importantes para o seu processo de consciência também.
- Há armadilhas pelo caminho
Agora que você sabe os padrões do seu boicote, é preciso aprender a negociar com ele como uma guerreira no campo de batalhas. Todos os dias provavelmente é dia de colocar a armadura para batalhar pela liberdade da psique. Todos os dias provavelmente haverão armadilhas variadas se apresentando pelo caminho. Todos os dias é preciso saber do que se tem fome para ter o instinto e a coragem necessária de dizer não, de saber quando basta, de defender seus interesses, recusando a se submeter à situações psíquicas que não vão ao encontro do que você realmente deseja. Com toda essa clareza de batalha, você vai enfim acabar o que começou ou finalmente começar a cozinha o que tem fome. A sugestão dessa batalha é a negociação e a diplomacia, porque não dá para exterminar de uma hora para outra o complexo que viveu tanto tempo se alimentando de você. A negociação funciona mais ou menos assim: se você tem medo do fracasso, conversa com o medo, leva ele junto na aventura e deixa claro que ele só está ali para te ajudar a parar quando necessário, pois o medo não precisa assumir o controle. Se você acha que tem algo mais importante para fazer, como acabar o seriado que começou, assista ao seriado, depois que fizer o que você tem que fazer, ou talvez, assista ao seriado durante o que você tem que fazer. Permita que as forças coexistam dentro de você e, assim, você vai se dando doses medicinais de consciência até a névoa se tornar uma parte bonita da paisagem, enfeitando os picos das montanhas longínquas sem embaçar sua visão.
Espero sinceramente que estas reflexões permitam que vocês se libertem.
Beijos,
Júlia
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