A Louca e Seu Amante (VI)

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“Por que o conhecimento do bem e do mal foi proibido a Adão e Eva? Sem esse conhecimento, seríamos todos um bando de bebês, ainda no Éden, sem nenhuma participação na vida. A mulher traz a vida ao mundo. Eva é a mãe deste mundo temporal. Anteriormente, você tinha um paraíso de sonho, ali no Jardim do Éden – sem tempo, sem nascimento, sem morte – , sem vida. A serpente, que morre e ressuscita, largando a pele para renovar a vida, é o senhor da árvore primordial, onde tempo e eternidade se reúnem. A serpente, na verdade é, o primeiro deus do Jardim do Éden” Joseph Campbell

A Louca encontra uma trilha que a ajuda na descida íngreme do penhasco. O santuário do Hierophante logo fica para trás e para o alto – ela pode o ver brilhando com sua ponte dourada entre o céu e a terra, enquanto os mantras que aprendeu nos últimos dias lhe servem de concentração na caminhada. A única forma de seguir adiante é entrando numa floresta de árvores longínquas contrastadas por um tapete infinito de folhas secas no chão. O sol está a pino quando ela finalmente encontra uma clareira para descansar e comer os pães que trouxe para a viagem.

Observando o farfalhar da copa das árvores em contemplação e digestão, deitada numa pedra, ela se pergunta para onde afinal deveria seguir. Ninguém lhe disse qual seria seu próximo destino. Ela simplesmente saiu porta afora, penhasco abaixo e floresta adentro. Se ela tivesse ao menos perguntado para o Hierophante a direção ideal para seu próximo aprendizado…

Mas ela é mestre de si, não poderia esquecer disso! Deveria encontrar os próximos passos na bússola do seu coração. Espirituosa e encantada com o poder da lembrança, ela senta em posição de lótus, fecha os olhos, entoa alguns mantras e pede ao universo, às estrelas, ao cosmos, assim como aprendera no santuário, ajuda e indicação. Então ela vê claramente a imagem de um pássaro azul de olhos amarelados voando sobre montanhas que estão envoltas por uma neblina opaca mesclada por uma relva verdejante. Ela abre os olhos sem dúvidas: deveria seguir para as Grandes Montanhas de Todos os Reinos.

Depois de alguns cálculos sobre qual o melhor trajeto até lá, ela decide ir pelo Caminho dos Camponeses, que alguém do santuário havia lhe comentado ter a melhor geleia de maçã dos reinos. Mas as horas passam, o pão acaba, o cantil de água fica vazio, os mantras não dão mais conta do seu cansaço físico e ela ainda não encontra nenhum sinal do caminho. Os últimos raios de sol tocam a copa das árvores quando finalmente a beira do fim da floresta aparece, de onde ela pode avistar um dos belos sítios dos camponeses, desenhado ao fundo pelo contorno sutil da cadeia das Grandes Montanhas de Todos os Reinos. Seu coração se enche de entusiasmo: em breve, ela chegaria lá. Mas por hora, ela precisa de água, comida, descanso e talvez um banho demorado. Por isso, desce o barranco em direção à casa de tijolos cor de baunilha e pergolados de flores rosa chá.

O céu está escuro, os grilos se comunicam energeticamente e as borboletas marrons rodopiam o lampião que ilumina a varanda quando a grande porta arqueada de madeira se abre revelando um homem de olhos cor musgo e quase dois metros de altura. A Louca se surpeende, pois esperava ser recebida por um casal de camponeses, talvez idosos, vivendo felizes para sempre naquela chácara bem cuidada e não sabe muito bem o que acontece com seu corpo, que se arrepia sem mais nem menos de uma forma muito diferente dos arrepios que sentiu no seu encontro com a Sacerdotisa. Antes de falar qualquer coisa, um grande cão cinza e muito peludo sai correndo saltitante preenchendo o silêncio com latidos animados. “Tudo bem, Eden, está tudo bem”, o homem fala se abaixando para acariciar o animal.

A Louca acorda dos arrepios lampejantes e finalmente se apresenta, enquanto Eden começa a cheirar seus sapatos e o homem volta a ficar em pé. “Olá. Estou caminhando por estes lados do reino dos vivos… uma jornada própria, se é que você me entende… desde o abismo eu… encontrei o Hierophante antes e… passei a ponte dourada… sabe… o dia não foi fácil… enfim, o que eu quero dizer é que preciso de um abrigo para esta noite.”, ela diz enrolada complementando a frase final rapidamente. “Ele gostou de você”, o homem comenta sorrindo, apontando para o cão. “Entre. Eu e Eden vamos adorar te receber”.  

A sala aconchegante cheira a cravo e canela. O homem a leva para um quarto no segundo andar com vista para o horizonte de montanhas e um pomar de maçãs. “Aqui você ficará confortável. É meu quarto de hóspedes. Muitos viajantes como você passam por aqui. Eu mesmo já fui um de vocês. Vou lhe trazer água quente para a banheira. Quando você estiver pronta, gostaria de ajuda para preparar a janta. Você se importa?”. Ela responde com um afirmativo, “É claro que não”, jogando-se na cama fofa de pés de tronco de árvores grossas.

De banho tomado, ela põe o vestido que a Imperatriz a presenteou, desembaraça os nós dos seus cabelos que ficaram por muito tempo amarrados no santuário e passa o óleo de rosas brancas. Desce para a cozinha observando os detalhes da casa, que é rodeada de vasos, flores, plantas, tapetes de pele de animais, móveis de madeira incrivelmente trabalhados… era um ambiente agradável de se estar. Logo, ela desata a cortar tomates grandes e vermelhos sob a imensa mesa rústica próxima ao fogão a lenha, enquanto o homem quebra muitos ovos numa tigela, oferecendo um vinho feito na sua vinícola. “Aqui no reino dos camponeses, vivemos produzindo geleias de maçã e vinhos das mais gostosas uvas. Você deve sentir o cheiro das compotas impregnado na minha casa”, ele comenta começando uma conversa que duraria horas.

Depois da janta, os dois caminham até a varanda observar a lua, acompanhados de Eden, sem parar de falar um só minuto. “Gostaria de lhe mostrar o meu pomar amanhã pela manhã, antes de você seguir viagem”, ele fala para a Louca com os dedos compridos na cabeça do cão. A Louca estava planejando partir no primeiro raio de sol, mas talvez ela poderia ir na metade da manhã, afinal, seria interessante conhecer as macieiras mais famosas do reino dos vivos e ouvir mais histórias do homem. Ele estava lhe ensinando muitas coisas incrivelmente diversas de sua vida fascinante no campo, enquanto ela lhe contava as aventuras que viveu desde que caiu no abismo. No quarto, a Louca sente seu coração acelerado. Desejava continuar a conversar. Ele era gentil, educado, atencioso e ela gostava do seu olhar límpido. Acabou dormindo pensando nele e acordou com gotas gordas de chuva açoitando as vidraças.

“Bom dia”, o homem diz moendo café ao lado do fogão a lenha. “Bom dia”, responde a Louca. “O tempo não está bom para a viagem e nem para um passeio no pomar. Talvez você pode me ajudar com as compotas até o tempo firmar”, o homem sugere sorrindo. A Louca aceita sem pensar muito. Os dois passam a manhã no galpão conversando, embalando e estocando geleias. Ao invés de firmar, o tempo piora. Pela tarde uma ventania ameaça levar as árvores embora. Os dois continuam papeando, perguntando um ao outro coisas da vida, aprendendo, cozinhando e brincando com Eden, até outra noite chegar.

No segundo dia, o tempo insiste em piorar. O Cavaleiro de Ouros traz notícias de que uma grande tempestade se forma nos céus do reino, recomendando para a segurança de todos que permaneçam abrigados e protegidos. A Louca não tem muitas opções senão ficar na casa do homem, que insiste em sua presença. Os dias se passam, a tempestade vem e vai, uma semana, duas semanas… ela adora ali estar. Aprende sobre poda, jardim, marcenaria, culinária, cuidado com os animais, artesanato. O homem sabia tantas coisas!

Até que um dia o sol aparece radiante. A Louca nem hesita quando ele a convida para finalmente conhecer o pomar. Eles colocam galochas grandes e pegam cestos de treliça. Conforme avançam, acompanhados de Eden, podem ver a cadeia das Grandes Montanhas de Todos os Reinos ficando cada vez mais nítida no horizonte. O coração da Louca se aperta. Já passou tanto tempo que ela está ali! É preciso seguir seu caminho de uma vez por todas. Chegando numa macieira exuberante, oposta a uma árvore de plátanos, o homem diz com os olhos apaixonados: “Esta é a minha macieira favorita. Venho cultivando ela a anos”. A Louca morde os lábios indecisa, mirando o horizonte das montanhas em contraste com os cabelos do homem. “Que bela, homem. Mas eu preciso lhe falar uma verdade. Devo partir. Hoje mesmo. Não posso mais ficar aqui. Devo seguir meu caminho”, ela pronuncia numa triste eloquência. “Eu sabia que esse momento iria chegar, Louca. Leve então algumas das minhas mais belas maçãs com você nessa jornada. É meu singelo presente de amor pela nossa amizade profunda”, ele fala em tom cordial.

Ela enche os olhos de lágrimas, aproxima-se da macieira e pega uma maçã rubi brilhante para experimentar. Ao dar uma mordida suculenta, é surpreendida por uma serpente que está enroscada no galho que acaba de tocar. A Louca sente uma atração repentina pela cobra, que desliza suavemente por todo seu corpo, desenrolando-se até a terra e desaparecendo de vista.

O homem observa a cena fascinado, enquanto Eden está deitado na relva.  “O Hierophante me disse que eu conseguiria seguir meu caminho quando minha alma gêmea libertasse a serpente”, o homem fala incrédulo, aproximando-se. “Você conhece o Hierophante?”, pergunta a Louca curiosa. “Sim, eu estive no santuário anos atrás. Eu era um viajante como você, mas meu destino era criar uma vida aqui e receber todos os viajantes do reino dos vivos, até… até você chegar”, ele fala sem entender ainda muito bem. Um fogo intenso nasce na Louca, como se viesse de onde a cobra deslizou, alinhando-se no seu ventre. Num impulso, ela se joga nos braços do homem e o beija. Quando menos percebe, tira seu vestido e ele, tira sua camisa e suas calças. Os dois ficam nus, jogam-se no chão, entrelaçam os corpos de um lado para o outro e fazem sexo sem pudor.

A Louca delira em completo prazer, entregando-se. A conexão é tanta que podem sentir a vibração das árvores, das abelhas e até mesmo de Eden que dorme nos pés do plátano. “Eu nunca te falei meu nome”, diz o homem gemendo. “E qual é?”, pergunta a Louca se deliciando. “Eu sou o Louco”, ele suspira e os dois gozam juntos como nunca gozaram antes, atingindo o êxtase completo enquanto a terra toda se ilumina.

Os dois se tornam um só.

Mas num piscar de olhos, ele desaparece. Apenas Eden presencia o brilho radiante que emana agora da pele da Louca. Ela chora, como se testemunhasse uma morte. Onde estaria o Louco? Ela se pergunta desesperada. “Eu te amo, Louco. Volta para mim”, ela murmura tocando as maçãs caídas no chão, mas Eden se atravessa na sua frente. O animal começa a andar em círculos, criando uma nuvem esfumaçante que logo se torna gorducha e sobe aos céus, abrindo-se num lindo anjo de cabelos de folhas de plátano. Ela boquiaberta, cobre-se como pode com as roupas largadas ao seu lado.

“Olá, Louca. Finalmente você foi além da sua realidade metafísica e encontrou sua dualidade. O Louco era você e voltou ao seu lugar de origem. Ele está dentro do seu coração. Você é homem e mulher, o Louco e a Louca. Aqui, neste jardim e pomar, você recebeu o maravilhoso e terrível aprendizado da dualidade que coexiste em cada ser. Agora, você pode seguir seu caminho, suas verdades, seu próprio sistema de crenças e valores, pois você teve a experiência do todo, do uno, da gênese do mundo”, ele pronuncia com os dois braços abertos. E, sem mais nem menos, transforma-se no pássaro azul de olhos amarelos que a Louca vislumbrou na floresta alguns dias atrás, voando na linha do horizonte.

Ela se sente iluminada, de dentro para fora, como uma deusa. “Eu sou, eu sou, eu sou”, ela repete, lembrando que agora o Louco está nela mesma. Ela sentiria sua falta, mas entende que tudo que admirava nele agora fazia parte dela. A revelação do anjo foi muito clara. Ela poderia ser a viajante aventureira e o caseiro fazedor de geleias, a dona do seu próprio nariz e o caloroso sorriso dos olhos cor de musgo. Amando-se como nunca se amou na vida, veste-se e volta agora só no caminho que vieram. Mas, antes de colocar os pés na varanda da casa, uma carruagem dourada aparece veloz, guiada por um jovem musculoso e radiante. “Vamos Louca, vamos. É preciso ter coragem e é preciso que não percamos tempo. As montanhas nos aguardam”.

Palavras-chave:

Gêmeos; Comunicação; Trocas; Conexões; Amor; Destino; Encontro; Encruzilhada; Decisão; Verdades próprias; Acolhimento; Generosidade; Viajantes; Intimidade; Conhecimento emocional; Alinhamento; Harmonia; Brilho próprio; Dualidade

Frase de Poder:

Eu escolho meu caminho e minhas verdades comunicando com amor.

Livros utilizados:

O Poder do Mito, entrevista de Bill Moyers com Joseph Campbell, publicado em 1988

PRÓXIMA CARTA: O CARRO

6 responses to “A Louca e Seu Amante (VI)”

  1. […] PRÓXIMA CARTA: OS AMANTES […]

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  2. Maria Carolina Lucena avatar
    Maria Carolina Lucena

    Nossa, enquanto lia, juro que me imaginei em vários lugares, menos sentada na cadeira do trabalho!
    Que texto!! ❤

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    1. dizem por ai que vai se tornar um livro… 😀

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  3. Amei a originalidade de como escreve e a questão do feminino, ser uma Louca em sua caminhada. De uma importância ímpar e de um bem querer total. Obrigado por essa leitura, vou acompanhar!!! =)

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    1. Obrigada! Que alegria mais um acompanhante da jornada da Louca 🙂 abraços!

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  4. MARAVILHOSO. Passei o dia ocupada e só pensando na hora de ler aqui.

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